terça-feira, 21 de setembro de 2010

os segredos da ficção

(...) Borges tem razão: não existe verdade absoluta no campo da criação. As técnicas se inventam e se reinventam. Mudam sempre. Iluminam-se e deslocam-se.
É preciso dizer isso com toda a convicção – cada narrativa e cada frase, não raro cada palavra, exige uma técnica diferente. Particular. Não há salvação. Mesmo Hemingway sabia que a pulsação narrativa pede palavras, frases e pontuação diferentes – ou até antagônicas – a cada movimento. Afinal, estamos falando do espírito humano. E nada é mais terrível do que o espírito humano com astúcias e armadilhas, abismos e sombras, clareiras e tempestades. Um autor é o personagem e é o autor, portanto deve estar sempre em equilíbrio entre os dois e entre os outros personagens que vão fazendo exigências. E outras palavras. E outras frases. E outras circunstâncias.
Além disso, há essa figura misteriosa e enigmática que atende pelo belo nome de leitor. Sem dúvida. É inevitável. Não se deve esquecer a proposta de Bakhtin: a obra de arte literária é um pacto que se afirma entre o autor e o leitor. Roland Barthes acrescenta que autor e leitor trocam confidências e afetos. E, para Leila Perrone-Moisés, na linguagem literária há sempre “promessas, encantos, amavios”. Sedução, pura sedução, troca de afetos e encantos. Quase uma jura de amor.

Esqueçam inspiração e talento
Escritor não tem estilo. Quem tem estilo é o personagem.
A partir dessa constatação, podemos iniciar um longo caminho em busca da Pulsação Narrativa – processo de criação ficcional – considerando em primeiro lugar que escrever é descobrir e trabalhar a voz narrativa que existe em cada um de nós. Alguns com talento, outros nem tanto – isso é outra coisa. Engenho e arte surgem com disciplina. Com brilho ou sem brilho, a estrada é difícil. Diferente para cada um. O talento, caso exista, se revela pelo trabalho. Exercício e empenho. Exercício permanente. Continuado.
A técnica se adquire com um constante exercício de paciência. Escrevemos todos os dias, sem descanso, sem pausa, sem pouso. Sempre. Errando e fracassando. Movidos, no entanto, por um empenho extraordinário. Escritores erram e fracassam muito. O melhor amigo do escritor é a cesta do lixo, já disse Moacyr Scliar. No entanto, o erro e o fracasso devem funcionar como incentivo. O ato de escrever precisa se tornar algo essencial nas nossas vidas.

A paixão pelos criadores
(...)
O personagem ocupa, com certeza, o lugar do narrador. Isto ocorre a partir do distanciamento do narrador tradicional, com o surgimento do discurso indireto livre de Flaubert, o aprofundamento do monólogo ou do monólogo entrecruzado e do fluxo da consciência. (...)
Pessoa ou personagem – a discussão é ampla e longa – o importante é que ele é o fundamento da narrativa. Em qualquer nível.

A narrativa e o leitor se entendem
(...) o autor do romance moderno sai de cena para conceder prioridade ao personagem. As luzes estão sobre ele, que é construído pela cena e por outros personagens, até alcançar o leitor, estabelecendo-se aí a pulsação narrativa, que é resultado das pulsações do personagem, da cena e do leitor.
Nesse processo, ocorre a interação entre narrativa e leitor, que entra na pulsação do texto, devolvendo ao texto a sua paixão de leitor.
Para chegar ao personagem, todavia, o autor iniciante precisa conhecer a própria voz, a voz de narrador, a voz narrativa. Aos poucos, e conscientemente, vai cedendo lugar ao personagem e aos personagens. No entanto, antes de tudo, precisa acreditar nas suas próprias possibilidades. Sem medo do erro. Sem medo do fracasso. Sem medo do grotesco. Afirma-se. Desafia o erro, o fracasso, o ridículo, realiza aquilo em que nem sequer acredita em princípio. Escreve.
Erramos quase sempre porque não respeitamos a nossa voz narrativa, não amamos o nosso timbre, queremos imitar a tradição. Não conhecemos as nossas particularidades. Os outros escrevem muito bem, dizem. Só os outros. Não acreditamos na nossa capacidade. (...)

Nascemos para a eternidade
Há produções artísticas que nascem, vivem, morrem. Menos a palavra escrita, sobretudo. A nossa palavra escrita. Aliás, no belo e resplandecente campo das artes, poucas ou pouquíssimas manifestações culturais estão destinadas ao desaparecimento. Reinventam-se, renovam-se. Mas, com certeza, a arte da palavra escrita nasceu para a eternidade. Portanto, é fundamental o domínio da palavra. Da nossa palavra. Da nossa frase. Do nosso período e do nosso parágrafo. Da nossa cena e do nosso cenário. Do nosso tempo verbal. Do nosso personagem – o personagem é o centro de toda narrativa, apesar dos conflitos teóricos. Dos nossos diálogos. Da nossa pontuação. Do nosso foco narrativo. Enfim, do romance, novela ou conto.
A descoberta da voz narrativa impressiona e inquieta. Um processo doloroso, embora saudável. Em geral ela não se parece com nada, com ninguém, estúpida. Não segue os métodos de narração convencional. Não é descrição. Não é redação. Nada é nada. Não importa, isso mesmo, não importa. As palavras batem umas nas outras, fazem barulhos, confundem.
Percebe-se, depois, e com a paciência que conduz à luz: ali está nascendo um escritor.


Raimundo Carrero

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