Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cizenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade
terça-feira, 21 de setembro de 2010
Resíduo
De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco) .
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Carlos Drummond de Andrade
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco) .
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Carlos Drummond de Andrade
Poema para Fernanda
ela me pede um poema
(de amor, diz)
e já pressinto
a falta
de palavra/
conceito/
prece/
som/
que enfeixe
uma saudade/
sonho/ vacuidade/
angústia de não-ser
sendo tudo a um só tempo
e o tempo boleando entre armadilhas e luzes
faiscando pedra e ferrugem na passagem dos dias
ela me pede um poema
(de amor, diz)
sem perceber
que o amor mais se revela
quando esconde o verbo e se constrói
na vigília silenciosa que se faz encontro
Dagmar Braga
(de amor, diz)
e já pressinto
a falta
de palavra/
conceito/
prece/
som/
que enfeixe
uma saudade/
sonho/ vacuidade/
angústia de não-ser
sendo tudo a um só tempo
e o tempo boleando entre armadilhas e luzes
faiscando pedra e ferrugem na passagem dos dias
ela me pede um poema
(de amor, diz)
sem perceber
que o amor mais se revela
quando esconde o verbo e se constrói
na vigília silenciosa que se faz encontro
Dagmar Braga
Satélite
Fim de tarde
No céu plúmbeo
A lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite
Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o o golfão de cismas,
O astro dos loucos e enamorados,
Mas tão-somente
Satélite
Ah lua deste fim de tarde,
desmissionária de atribuições românticas
Sem show para as disponibilidades sentimentais!
Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.
Manuel Bandeira
No céu plúmbeo
A lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite
Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o o golfão de cismas,
O astro dos loucos e enamorados,
Mas tão-somente
Satélite
Ah lua deste fim de tarde,
desmissionária de atribuições românticas
Sem show para as disponibilidades sentimentais!
Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.
Manuel Bandeira
o haver
Resta acima de tudo essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
- Perdoai-vos! Porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, dessa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinícius
Resta esse coração queimado como um círio
Numa catedral de ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e do mal entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir a ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De mundo inexistente e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino
Resta esse diálogo cotidiano da morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem amada
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.
Vinícius de Moraes
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
- Perdoai-vos! Porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, dessa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinícius
Resta esse coração queimado como um círio
Numa catedral de ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e do mal entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir a ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De mundo inexistente e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino
Resta esse diálogo cotidiano da morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem amada
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.
Vinícius de Moraes
poema das sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Carlos Drummond de Andrade
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Carlos Drummond de Andrade
O impossível carinho
(Manuel Bandeira)
Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor –
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!
Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor –
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!
poesia
gastei uma hora pensando num verso
que a pena não quer escrever
no entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo
ele está cá dentro e não quer sair
mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira
carlos drummond de andrade
que a pena não quer escrever
no entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo
ele está cá dentro e não quer sair
mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira
carlos drummond de andrade
Dialética
É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...
Vinícius de Moraes
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...
Vinícius de Moraes
"A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.
Pão é amor entre estranhos."
Clarice Lispector
Pão é amor entre estranhos."
Clarice Lispector
As noites
A noite/1
Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.
A noite/2
Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.
A noite/3
Eles são dois por engano. A noite corrige.
Eduardo Galeano
in Mulheres
Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.
A noite/2
Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.
A noite/3
Eles são dois por engano. A noite corrige.
Eduardo Galeano
in Mulheres
Ode no cinquentenário do poeta brasileiro
Esse incessante morrer
que nos teus versos encontro
é tua vida, poeta,
e por ele te comunicas
com o mundo em que te esvais.
Debruço-me em teus poemas
e neles percebo as ilhas
em que nem tu nem nós habitamos
(ou jamais habitaremos!)
e nessas ilhas me banho
num sol que não é dos trópicos,
numa água que não é das fontes
mas que ambos refletem a imagem
de um mundo amoroso e patético.
Tua violenta ternura,
tua infinita polícia,
tua trágica existência
no entanto sem nenhum sulco
exterior - salvo tuas rugas,
tua gravidade simples,
a acidez e o carinho simples
que desbordam em teus retratos,
que capturo em teus poemas,
são razões por que te amamos
e por que nos fazes sofrer...
Certamente não sabia
que nos fazes sofrer
É difícil de explicar
esse sofrimento seco,
sem qualquer lágrima de amor,
sentimento de homens juntos,
que se comunicam sem gesto
e sem palavras se invadem
se aproximam, se compreendem
e se calam sem orgulho.
Não é o canto da andorinha, debruçada nos telhados da Lapa,
anunciando que tua vida passou à toa, à toa.
Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino,
diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito
[infiltrado.
Não são os carvoeirinhos raquíticos voltando encarapitados
[nos burros velhos.
Não são os mortos do Recife dormindo profundamente na noite.
Nem é tua vida, nem a vida do major veterano da guerra
[do Paraguai,
a de Bentinho Jararaca
ou a de Christina Georgina Rossetti:
és tu mesmo, é tua poesia,
tua pungente, inefável poesia,
ferindo as almas, sob a aparência balsâmica,
queimando as almas, fogo celeste, ao visitá-las;
é o fenômeno poético, de que te constituíste o misterioso portador
e que vem trazer-nos na aurora o sopro quente dos mundos,
[das amadas exuberantes e das situações exemplares
[que não suspeitávamos.
Por isto sofremos: pela mensagem que nos confias
entre ônibus, abafada pelo pregão dos jornais e mil
[queixas operárias;
essa insistente mas discreta mensagem
que, aos cinqüenta anos, poeta, nos trazes;
e essa fidelidade a ti mesmo com que nos apareces
sem uma queixa, no rosto entretanto experiente,
mão firme estendida para o aperto fraterno
- o poeta acima da guerra e do ódio entre os homens -,
o poeta ainda capaz de amar Esmeralda embora a alma anoiteça,
o poeta melhor que nós todos, o poeta mais forte
- mas haverá lugar para a poesia?
Efetivamente o poeta Rimbaud fartou-se de escrever,
o poeta Maiakovski suicidou-se,
o poeta Schmidt abastece de água o Distrito Federal...
Em meio a palavras melancólicas,
ouve-se o surdo rumor de combates longínquos
(cada vez mais perto, mais, daqui a pouco dentro de nós).
E enquanto homens suspiram, combatem ou simplesmente
[ganham dinheiro,
ninguém percebe que o poeta faz cinqüenta anos,
que o poeta permaneceu o mesmo, embora alguma coisa de
[extraordinário se houvesse passado,
alguma coisa encoberta de nós, que nem os olhos traíram nem
[as mãos apalparam,
susto, emoção, enternecimento,
e uma confiança maior no poeta e um pedido lancinante para que
[não nos deixe sozinhos nesta cidade
em que nos sentimos pequenos à espera dos maiores acontecimentos.
Que o poeta nos encaminhe e nos proteja
e que o seu canto confidencial ressoe para consolo de muitos
[e esperança de todos,
os delicados e os oprimidos, acima das profissões e dos vãos
[disfarces do homem.
Que o poeta Manuel Bandeira escute esse apelo de um homem humilde.
Carlos Drummond de Andrade
que nos teus versos encontro
é tua vida, poeta,
e por ele te comunicas
com o mundo em que te esvais.
Debruço-me em teus poemas
e neles percebo as ilhas
em que nem tu nem nós habitamos
(ou jamais habitaremos!)
e nessas ilhas me banho
num sol que não é dos trópicos,
numa água que não é das fontes
mas que ambos refletem a imagem
de um mundo amoroso e patético.
Tua violenta ternura,
tua infinita polícia,
tua trágica existência
no entanto sem nenhum sulco
exterior - salvo tuas rugas,
tua gravidade simples,
a acidez e o carinho simples
que desbordam em teus retratos,
que capturo em teus poemas,
são razões por que te amamos
e por que nos fazes sofrer...
Certamente não sabia
que nos fazes sofrer
É difícil de explicar
esse sofrimento seco,
sem qualquer lágrima de amor,
sentimento de homens juntos,
que se comunicam sem gesto
e sem palavras se invadem
se aproximam, se compreendem
e se calam sem orgulho.
Não é o canto da andorinha, debruçada nos telhados da Lapa,
anunciando que tua vida passou à toa, à toa.
Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino,
diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito
[infiltrado.
Não são os carvoeirinhos raquíticos voltando encarapitados
[nos burros velhos.
Não são os mortos do Recife dormindo profundamente na noite.
Nem é tua vida, nem a vida do major veterano da guerra
[do Paraguai,
a de Bentinho Jararaca
ou a de Christina Georgina Rossetti:
és tu mesmo, é tua poesia,
tua pungente, inefável poesia,
ferindo as almas, sob a aparência balsâmica,
queimando as almas, fogo celeste, ao visitá-las;
é o fenômeno poético, de que te constituíste o misterioso portador
e que vem trazer-nos na aurora o sopro quente dos mundos,
[das amadas exuberantes e das situações exemplares
[que não suspeitávamos.
Por isto sofremos: pela mensagem que nos confias
entre ônibus, abafada pelo pregão dos jornais e mil
[queixas operárias;
essa insistente mas discreta mensagem
que, aos cinqüenta anos, poeta, nos trazes;
e essa fidelidade a ti mesmo com que nos apareces
sem uma queixa, no rosto entretanto experiente,
mão firme estendida para o aperto fraterno
- o poeta acima da guerra e do ódio entre os homens -,
o poeta ainda capaz de amar Esmeralda embora a alma anoiteça,
o poeta melhor que nós todos, o poeta mais forte
- mas haverá lugar para a poesia?
Efetivamente o poeta Rimbaud fartou-se de escrever,
o poeta Maiakovski suicidou-se,
o poeta Schmidt abastece de água o Distrito Federal...
Em meio a palavras melancólicas,
ouve-se o surdo rumor de combates longínquos
(cada vez mais perto, mais, daqui a pouco dentro de nós).
E enquanto homens suspiram, combatem ou simplesmente
[ganham dinheiro,
ninguém percebe que o poeta faz cinqüenta anos,
que o poeta permaneceu o mesmo, embora alguma coisa de
[extraordinário se houvesse passado,
alguma coisa encoberta de nós, que nem os olhos traíram nem
[as mãos apalparam,
susto, emoção, enternecimento,
e uma confiança maior no poeta e um pedido lancinante para que
[não nos deixe sozinhos nesta cidade
em que nos sentimos pequenos à espera dos maiores acontecimentos.
Que o poeta nos encaminhe e nos proteja
e que o seu canto confidencial ressoe para consolo de muitos
[e esperança de todos,
os delicados e os oprimidos, acima das profissões e dos vãos
[disfarces do homem.
Que o poeta Manuel Bandeira escute esse apelo de um homem humilde.
Carlos Drummond de Andrade
Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade in Sentimento do Mundo
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade in Sentimento do Mundo
"e se realmente gostarem? se o toque do outro de repente for bom? bom, a palavra é essa. se o outro for bom para você. se te der vontade de viver. se o cheiro do suor do outro também for bom. se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. o pé, no fim do dia. a boca, de manhã cedo. bons, normais, comuns. coisa de gente. cheiros íntimos, secretos. ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. e se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? quando você chega no mais íntimo, no tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. você também tem cheiros. as pessoas têm cheiros, é natural. os animais cheiram uns aos outros. no rabo. o que é que você queria? rendas brancas imaculadas? será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você até pode gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. o amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. se amor for a coragem de ser bicho. se amor for a coragem da própria merda. e depois, um instante mais tarde, isso nem sequer será coragem nenhuma, porque deixou de ter importância. o que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. porque então você se ama também."
(Caio Fernando Abreu)
(Caio Fernando Abreu)
Iniciação
Foi numa dessas manhãs sem sol que percebi o quanto já estava dentro do que não suspeitava. E a tal ponto que tive a certeza súbita que não conseguiria mais sair. Não sabia até que ponto isso seria bom ou mau — mas de qualquer forma não conseguia definir o que se fez quando comecei a perceber as lembranças espatifadas pelo quarto. Não que houvesse fotografias ou qualquer coisa de muito concreto — certamente havia o concreto em algumas roupas, uma escova de dentes, alguns discos, um livro: as miudezas se amontoavam pelos cantos. Mas o que marcava e pesava mais era o intangível.
Lembro que naquela manhã abri os olhos de repente para um teto claro e minha mão tocou um espaço vazio a meu lado sobre a cama, e não encontrando procurou um cigarro no maço sobre a mesa e virou o despertador de frente para a parede e depois buscou um fósforo e uma chama e fumei fumei fumei: os olhos fixos naquele teto claro. Chovia e os jornais alardeavam enchentes. Os carros eram carregados pelas águas, os ônibus caíam das pontes e nas praias o mar explodia alto respingando pessoas amedrontadas. A minha mão direita conduzia espaçadamente um cigarro até minha boca: minha boca sugava uma fumaça áspera para dentro dos pulmões escurecidos: meus pulmões escurecidos lançavam pela boca e pelas narinas um fio de fumaça em direção ao teto claro onde meus olhos permaneciam fixos. E minha mão esquerda tocava uma ausência sobre a cama.
Tudo isso me perturbava porque eu pensara até então que, de certa forma, toda minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Até então aceitara todas as ausências e dizia muitas vezes para os outros que me sentia um pouco como um álbum de retratos. Carregava centenas de fotografias amarelecidas em páginas que folheava detidamente durante a insônia e dentro dos ônibus olhando pelas janelas e nos elevadores de edifícios altos e em todos os lugares onde de repente ficava sozinho comigo mesmo. Virava as páginas lentamente, há muito tempo antes, e não me surpreendia nem me atemorizava pensar que muito tempo depois estaria da mesma forma de mãos dadas com um outro eu amortecido — da mesma forma — revendo antigas fotografias. Mas o que me doía, agora, era um passado próximo.
Não conseguia compreender como conseguira penetrar naquilo sem ter consciência e sem o menor policiamento: logo eu, que confiava nos meus processos, e que dizia sempre saber de tudo quanto fazia ou dizia. A vida era lenta e eu podia comandá-la. Essa crença fácil tinha me alimentado até o momento em que, deitado ali, no meio da manhã sem sol, olhos fixos no teto claro, suportava um cigarro na mão direita e uma ausência na mão esquerda. Seria sem sentido chorar, então chorei enquanto a chuva caía porque estava tão sozinho que o melhor a ser feito era qualquer coisa sem sentido. Durante algum tempo fiz coisas antigas como chorar e sentir saudade da maneira mais humana possível: fiz coisas antigas e humanas como se elas me solucionassem. Não solucionaram. Então fui penetrando de leve numa região esverdeada em direção a qualquer coisa como uma lembrança depois da qual não haveria depois. Era talvez uma coisa tão antiga e tão humana quanto qualquer outra, mas não tentei defini-la. Deixei que o verde se espalhasse e os olhos quase fechados e os ouvidos separassem do som dos pingos da chuva batendo sobre os telhados de zinco uma voz que crescia numa história contada devagar como se eu ainda fosse menino e ainda houvesse tias solteironas pelos corredores contando histórias em dias de chuva e sonhos fritos em açúcar e canela e manteiga.
Caio Fernando Abreu
Lembro que naquela manhã abri os olhos de repente para um teto claro e minha mão tocou um espaço vazio a meu lado sobre a cama, e não encontrando procurou um cigarro no maço sobre a mesa e virou o despertador de frente para a parede e depois buscou um fósforo e uma chama e fumei fumei fumei: os olhos fixos naquele teto claro. Chovia e os jornais alardeavam enchentes. Os carros eram carregados pelas águas, os ônibus caíam das pontes e nas praias o mar explodia alto respingando pessoas amedrontadas. A minha mão direita conduzia espaçadamente um cigarro até minha boca: minha boca sugava uma fumaça áspera para dentro dos pulmões escurecidos: meus pulmões escurecidos lançavam pela boca e pelas narinas um fio de fumaça em direção ao teto claro onde meus olhos permaneciam fixos. E minha mão esquerda tocava uma ausência sobre a cama.
Tudo isso me perturbava porque eu pensara até então que, de certa forma, toda minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Até então aceitara todas as ausências e dizia muitas vezes para os outros que me sentia um pouco como um álbum de retratos. Carregava centenas de fotografias amarelecidas em páginas que folheava detidamente durante a insônia e dentro dos ônibus olhando pelas janelas e nos elevadores de edifícios altos e em todos os lugares onde de repente ficava sozinho comigo mesmo. Virava as páginas lentamente, há muito tempo antes, e não me surpreendia nem me atemorizava pensar que muito tempo depois estaria da mesma forma de mãos dadas com um outro eu amortecido — da mesma forma — revendo antigas fotografias. Mas o que me doía, agora, era um passado próximo.
Não conseguia compreender como conseguira penetrar naquilo sem ter consciência e sem o menor policiamento: logo eu, que confiava nos meus processos, e que dizia sempre saber de tudo quanto fazia ou dizia. A vida era lenta e eu podia comandá-la. Essa crença fácil tinha me alimentado até o momento em que, deitado ali, no meio da manhã sem sol, olhos fixos no teto claro, suportava um cigarro na mão direita e uma ausência na mão esquerda. Seria sem sentido chorar, então chorei enquanto a chuva caía porque estava tão sozinho que o melhor a ser feito era qualquer coisa sem sentido. Durante algum tempo fiz coisas antigas como chorar e sentir saudade da maneira mais humana possível: fiz coisas antigas e humanas como se elas me solucionassem. Não solucionaram. Então fui penetrando de leve numa região esverdeada em direção a qualquer coisa como uma lembrança depois da qual não haveria depois. Era talvez uma coisa tão antiga e tão humana quanto qualquer outra, mas não tentei defini-la. Deixei que o verde se espalhasse e os olhos quase fechados e os ouvidos separassem do som dos pingos da chuva batendo sobre os telhados de zinco uma voz que crescia numa história contada devagar como se eu ainda fosse menino e ainda houvesse tias solteironas pelos corredores contando histórias em dias de chuva e sonhos fritos em açúcar e canela e manteiga.
Caio Fernando Abreu
"Me ajuda que hoje eu tenho certeza absoluta que já fui Pessoa ou Virginia Woolf em outras vidas, e filósofo em tupi-guarani, enganado pelos búzios, pelas cartas, pelos astros, pelas fadas. Me puxa para fora deste túnel, me mostra o caminho para baixo da quaresmeira em flor que eu quero encontrar em seu tronco o lótus de mil pétalas do topo da minha cabeça tonta para sair de mim e respirar aliviado e por um instante não ser mais eu, que hoje não me suporto nem me perdôo de ser como sou sem solução".
"Olha, eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. Eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não me deixam, você não me deixa"
"Essa morte constante das coisas é o que mais dói"
"E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça. Com requintes, com sofreguidão, com textos que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não me firam, minto. E tomo a providência cuidadosa de eu mesmo me ferir, sem prestar atenção se estou ferindo o outro também. Não queria fazer mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar absolutamente nada. Por que o Zen de repente escapa e se transforma em Sem? Sem que se consiga controlar".
Caio Fernando Abreu
"Olha, eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. Eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não me deixam, você não me deixa"
"Essa morte constante das coisas é o que mais dói"
"E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça. Com requintes, com sofreguidão, com textos que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não me firam, minto. E tomo a providência cuidadosa de eu mesmo me ferir, sem prestar atenção se estou ferindo o outro também. Não queria fazer mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar absolutamente nada. Por que o Zen de repente escapa e se transforma em Sem? Sem que se consiga controlar".
Caio Fernando Abreu
"Não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais auto destrutiva do que insistir sem fé nenhuma?"
"Menos pela cicatriz deixada, uma feridantiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva"
"Você não me conta seus desejos. Sorri com os olhos, com a mesma boca que mais tarde, um dia, depois daqui, poderá me dizer: não"
"Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio"
Caio Fernando Abreu
"Menos pela cicatriz deixada, uma feridantiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva"
"Você não me conta seus desejos. Sorri com os olhos, com a mesma boca que mais tarde, um dia, depois daqui, poderá me dizer: não"
"Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio"
Caio Fernando Abreu
Cinco Mulheres
- O inimigo principal, qual é? A ditadura militar? A burguesia boliviana? O imperialismo? Não, companheiros. Eu quero dizer só isso: nosso inimigo principal é o medo. Temos medo por dentro.
Só isso disse Domitila na mina de estanho de Catavi e então veio para La Paz, a capital da Bolívia, com outras quatro mulheres e uma vintena de filhos. No Natal começaram a greve de fome. Ninguém acreditou nelas. Vários acharam que esta piada era boa:
- Quer dizer que cinco mulheres vão derrubar a ditadura?
O sacerdote Luis Espinal é o primeiro a se somar. Num minuto já são mil e quinhentos os que passam fome na Bolívia inteira, de propósito. As cinco mulheres, acostumadas à fome desde que nasceram, chamam a água de frango ou peru, de costeleta o sal, e o riso as alimenta. Multiplicam-se enquanto isso os grevistas de fome, três mil, dez mil, até que são incontáveis os bolivianos que deixam de comer e deixam de trabalhar e vinte e três dias depois do começo da greve de fome o povo se rebela e invade as ruas e já não há como parar isto.
Em 1978, as cinco mulheres derrubam a ditadura militar.
Eduardo Galeano, in Mulheres
Só isso disse Domitila na mina de estanho de Catavi e então veio para La Paz, a capital da Bolívia, com outras quatro mulheres e uma vintena de filhos. No Natal começaram a greve de fome. Ninguém acreditou nelas. Vários acharam que esta piada era boa:
- Quer dizer que cinco mulheres vão derrubar a ditadura?
O sacerdote Luis Espinal é o primeiro a se somar. Num minuto já são mil e quinhentos os que passam fome na Bolívia inteira, de propósito. As cinco mulheres, acostumadas à fome desde que nasceram, chamam a água de frango ou peru, de costeleta o sal, e o riso as alimenta. Multiplicam-se enquanto isso os grevistas de fome, três mil, dez mil, até que são incontáveis os bolivianos que deixam de comer e deixam de trabalhar e vinte e três dias depois do começo da greve de fome o povo se rebela e invade as ruas e já não há como parar isto.
Em 1978, as cinco mulheres derrubam a ditadura militar.
Eduardo Galeano, in Mulheres
Gnossienne nº 1
Eu acreditei que podia amar
o teu corpo, o teu modo de insinuar o coração
nas palavras. Mas era apenas a forma como a noite
sublinhava as superfícies, eu nunca pude atravessar
essa espessura. Estavas ali para te dispores aos meus sentidos
mas crescias fora de alcance no teu próprio
pensamento. Uma distância que só serviria
aos lobos, um mau caminho arrancado às fragas.
Já só conhecia os dias onde tu os frequentavas, o sítio
em que me mantinhas era mais urgente
que o sangue. Sem dúvida que vinhas pelo meu desejo
mas eu perdia sempre alguma coisa
quando te ganhava. Às vezes era só
a minha vontade, outras vezes era toda a frase
do meu nome.
Rui Pires Cabral
o teu corpo, o teu modo de insinuar o coração
nas palavras. Mas era apenas a forma como a noite
sublinhava as superfícies, eu nunca pude atravessar
essa espessura. Estavas ali para te dispores aos meus sentidos
mas crescias fora de alcance no teu próprio
pensamento. Uma distância que só serviria
aos lobos, um mau caminho arrancado às fragas.
Já só conhecia os dias onde tu os frequentavas, o sítio
em que me mantinhas era mais urgente
que o sangue. Sem dúvida que vinhas pelo meu desejo
mas eu perdia sempre alguma coisa
quando te ganhava. Às vezes era só
a minha vontade, outras vezes era toda a frase
do meu nome.
Rui Pires Cabral
Invictus
Invictus
Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.
In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.
Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.
It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll.
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.
William Ernest Henley
----------------------------------------------------------------
Do fundo desta noite que persiste
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.
Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.
Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.
Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.
tradução em português:
André C. S. Masini
Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.
In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.
Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.
It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll.
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.
William Ernest Henley
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Do fundo desta noite que persiste
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.
Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.
Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.
Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.
tradução em português:
André C. S. Masini
A José Olympio
Que coisa é o livro? Que contém na sua
frágil arquitetura transparente?
são palavras, apenas, ou é a nua
exposição de uma alma confidente?
De que lenho brotou? que nobre instinto
da prensa fez surgir essa obra de arte
que vive junto a nós, sente o que eu sinto
e vai clareando o mundo em toda parte?
Meu caro José Olympio, sê louvado
pelos livros que o tempo vai guardando,
nascidos de teu sonho no passado,
pois cada livro ao tempo irá lembrando
o que a vida de um homem pode ser
quando ele sabe amar e compreender.
Carlos Drummond de Andrade
frágil arquitetura transparente?
são palavras, apenas, ou é a nua
exposição de uma alma confidente?
De que lenho brotou? que nobre instinto
da prensa fez surgir essa obra de arte
que vive junto a nós, sente o que eu sinto
e vai clareando o mundo em toda parte?
Meu caro José Olympio, sê louvado
pelos livros que o tempo vai guardando,
nascidos de teu sonho no passado,
pois cada livro ao tempo irá lembrando
o que a vida de um homem pode ser
quando ele sabe amar e compreender.
Carlos Drummond de Andrade
os segredos da ficção
(...) Borges tem razão: não existe verdade absoluta no campo da criação. As técnicas se inventam e se reinventam. Mudam sempre. Iluminam-se e deslocam-se.
É preciso dizer isso com toda a convicção – cada narrativa e cada frase, não raro cada palavra, exige uma técnica diferente. Particular. Não há salvação. Mesmo Hemingway sabia que a pulsação narrativa pede palavras, frases e pontuação diferentes – ou até antagônicas – a cada movimento. Afinal, estamos falando do espírito humano. E nada é mais terrível do que o espírito humano com astúcias e armadilhas, abismos e sombras, clareiras e tempestades. Um autor é o personagem e é o autor, portanto deve estar sempre em equilíbrio entre os dois e entre os outros personagens que vão fazendo exigências. E outras palavras. E outras frases. E outras circunstâncias.
Além disso, há essa figura misteriosa e enigmática que atende pelo belo nome de leitor. Sem dúvida. É inevitável. Não se deve esquecer a proposta de Bakhtin: a obra de arte literária é um pacto que se afirma entre o autor e o leitor. Roland Barthes acrescenta que autor e leitor trocam confidências e afetos. E, para Leila Perrone-Moisés, na linguagem literária há sempre “promessas, encantos, amavios”. Sedução, pura sedução, troca de afetos e encantos. Quase uma jura de amor.
Esqueçam inspiração e talento
Escritor não tem estilo. Quem tem estilo é o personagem.
A partir dessa constatação, podemos iniciar um longo caminho em busca da Pulsação Narrativa – processo de criação ficcional – considerando em primeiro lugar que escrever é descobrir e trabalhar a voz narrativa que existe em cada um de nós. Alguns com talento, outros nem tanto – isso é outra coisa. Engenho e arte surgem com disciplina. Com brilho ou sem brilho, a estrada é difícil. Diferente para cada um. O talento, caso exista, se revela pelo trabalho. Exercício e empenho. Exercício permanente. Continuado.
A técnica se adquire com um constante exercício de paciência. Escrevemos todos os dias, sem descanso, sem pausa, sem pouso. Sempre. Errando e fracassando. Movidos, no entanto, por um empenho extraordinário. Escritores erram e fracassam muito. O melhor amigo do escritor é a cesta do lixo, já disse Moacyr Scliar. No entanto, o erro e o fracasso devem funcionar como incentivo. O ato de escrever precisa se tornar algo essencial nas nossas vidas.
A paixão pelos criadores
(...)
O personagem ocupa, com certeza, o lugar do narrador. Isto ocorre a partir do distanciamento do narrador tradicional, com o surgimento do discurso indireto livre de Flaubert, o aprofundamento do monólogo ou do monólogo entrecruzado e do fluxo da consciência. (...)
Pessoa ou personagem – a discussão é ampla e longa – o importante é que ele é o fundamento da narrativa. Em qualquer nível.
A narrativa e o leitor se entendem
(...) o autor do romance moderno sai de cena para conceder prioridade ao personagem. As luzes estão sobre ele, que é construído pela cena e por outros personagens, até alcançar o leitor, estabelecendo-se aí a pulsação narrativa, que é resultado das pulsações do personagem, da cena e do leitor.
Nesse processo, ocorre a interação entre narrativa e leitor, que entra na pulsação do texto, devolvendo ao texto a sua paixão de leitor.
Para chegar ao personagem, todavia, o autor iniciante precisa conhecer a própria voz, a voz de narrador, a voz narrativa. Aos poucos, e conscientemente, vai cedendo lugar ao personagem e aos personagens. No entanto, antes de tudo, precisa acreditar nas suas próprias possibilidades. Sem medo do erro. Sem medo do fracasso. Sem medo do grotesco. Afirma-se. Desafia o erro, o fracasso, o ridículo, realiza aquilo em que nem sequer acredita em princípio. Escreve.
Erramos quase sempre porque não respeitamos a nossa voz narrativa, não amamos o nosso timbre, queremos imitar a tradição. Não conhecemos as nossas particularidades. Os outros escrevem muito bem, dizem. Só os outros. Não acreditamos na nossa capacidade. (...)
Nascemos para a eternidade
Há produções artísticas que nascem, vivem, morrem. Menos a palavra escrita, sobretudo. A nossa palavra escrita. Aliás, no belo e resplandecente campo das artes, poucas ou pouquíssimas manifestações culturais estão destinadas ao desaparecimento. Reinventam-se, renovam-se. Mas, com certeza, a arte da palavra escrita nasceu para a eternidade. Portanto, é fundamental o domínio da palavra. Da nossa palavra. Da nossa frase. Do nosso período e do nosso parágrafo. Da nossa cena e do nosso cenário. Do nosso tempo verbal. Do nosso personagem – o personagem é o centro de toda narrativa, apesar dos conflitos teóricos. Dos nossos diálogos. Da nossa pontuação. Do nosso foco narrativo. Enfim, do romance, novela ou conto.
A descoberta da voz narrativa impressiona e inquieta. Um processo doloroso, embora saudável. Em geral ela não se parece com nada, com ninguém, estúpida. Não segue os métodos de narração convencional. Não é descrição. Não é redação. Nada é nada. Não importa, isso mesmo, não importa. As palavras batem umas nas outras, fazem barulhos, confundem.
Percebe-se, depois, e com a paciência que conduz à luz: ali está nascendo um escritor.
Raimundo Carrero
É preciso dizer isso com toda a convicção – cada narrativa e cada frase, não raro cada palavra, exige uma técnica diferente. Particular. Não há salvação. Mesmo Hemingway sabia que a pulsação narrativa pede palavras, frases e pontuação diferentes – ou até antagônicas – a cada movimento. Afinal, estamos falando do espírito humano. E nada é mais terrível do que o espírito humano com astúcias e armadilhas, abismos e sombras, clareiras e tempestades. Um autor é o personagem e é o autor, portanto deve estar sempre em equilíbrio entre os dois e entre os outros personagens que vão fazendo exigências. E outras palavras. E outras frases. E outras circunstâncias.
Além disso, há essa figura misteriosa e enigmática que atende pelo belo nome de leitor. Sem dúvida. É inevitável. Não se deve esquecer a proposta de Bakhtin: a obra de arte literária é um pacto que se afirma entre o autor e o leitor. Roland Barthes acrescenta que autor e leitor trocam confidências e afetos. E, para Leila Perrone-Moisés, na linguagem literária há sempre “promessas, encantos, amavios”. Sedução, pura sedução, troca de afetos e encantos. Quase uma jura de amor.
Esqueçam inspiração e talento
Escritor não tem estilo. Quem tem estilo é o personagem.
A partir dessa constatação, podemos iniciar um longo caminho em busca da Pulsação Narrativa – processo de criação ficcional – considerando em primeiro lugar que escrever é descobrir e trabalhar a voz narrativa que existe em cada um de nós. Alguns com talento, outros nem tanto – isso é outra coisa. Engenho e arte surgem com disciplina. Com brilho ou sem brilho, a estrada é difícil. Diferente para cada um. O talento, caso exista, se revela pelo trabalho. Exercício e empenho. Exercício permanente. Continuado.
A técnica se adquire com um constante exercício de paciência. Escrevemos todos os dias, sem descanso, sem pausa, sem pouso. Sempre. Errando e fracassando. Movidos, no entanto, por um empenho extraordinário. Escritores erram e fracassam muito. O melhor amigo do escritor é a cesta do lixo, já disse Moacyr Scliar. No entanto, o erro e o fracasso devem funcionar como incentivo. O ato de escrever precisa se tornar algo essencial nas nossas vidas.
A paixão pelos criadores
(...)
O personagem ocupa, com certeza, o lugar do narrador. Isto ocorre a partir do distanciamento do narrador tradicional, com o surgimento do discurso indireto livre de Flaubert, o aprofundamento do monólogo ou do monólogo entrecruzado e do fluxo da consciência. (...)
Pessoa ou personagem – a discussão é ampla e longa – o importante é que ele é o fundamento da narrativa. Em qualquer nível.
A narrativa e o leitor se entendem
(...) o autor do romance moderno sai de cena para conceder prioridade ao personagem. As luzes estão sobre ele, que é construído pela cena e por outros personagens, até alcançar o leitor, estabelecendo-se aí a pulsação narrativa, que é resultado das pulsações do personagem, da cena e do leitor.
Nesse processo, ocorre a interação entre narrativa e leitor, que entra na pulsação do texto, devolvendo ao texto a sua paixão de leitor.
Para chegar ao personagem, todavia, o autor iniciante precisa conhecer a própria voz, a voz de narrador, a voz narrativa. Aos poucos, e conscientemente, vai cedendo lugar ao personagem e aos personagens. No entanto, antes de tudo, precisa acreditar nas suas próprias possibilidades. Sem medo do erro. Sem medo do fracasso. Sem medo do grotesco. Afirma-se. Desafia o erro, o fracasso, o ridículo, realiza aquilo em que nem sequer acredita em princípio. Escreve.
Erramos quase sempre porque não respeitamos a nossa voz narrativa, não amamos o nosso timbre, queremos imitar a tradição. Não conhecemos as nossas particularidades. Os outros escrevem muito bem, dizem. Só os outros. Não acreditamos na nossa capacidade. (...)
Nascemos para a eternidade
Há produções artísticas que nascem, vivem, morrem. Menos a palavra escrita, sobretudo. A nossa palavra escrita. Aliás, no belo e resplandecente campo das artes, poucas ou pouquíssimas manifestações culturais estão destinadas ao desaparecimento. Reinventam-se, renovam-se. Mas, com certeza, a arte da palavra escrita nasceu para a eternidade. Portanto, é fundamental o domínio da palavra. Da nossa palavra. Da nossa frase. Do nosso período e do nosso parágrafo. Da nossa cena e do nosso cenário. Do nosso tempo verbal. Do nosso personagem – o personagem é o centro de toda narrativa, apesar dos conflitos teóricos. Dos nossos diálogos. Da nossa pontuação. Do nosso foco narrativo. Enfim, do romance, novela ou conto.
A descoberta da voz narrativa impressiona e inquieta. Um processo doloroso, embora saudável. Em geral ela não se parece com nada, com ninguém, estúpida. Não segue os métodos de narração convencional. Não é descrição. Não é redação. Nada é nada. Não importa, isso mesmo, não importa. As palavras batem umas nas outras, fazem barulhos, confundem.
Percebe-se, depois, e com a paciência que conduz à luz: ali está nascendo um escritor.
Raimundo Carrero
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